Pedalo, pedalo, pedalo
E o bife de fígado escondido no pilão de canto
E o choro no quartinho escuro porque a vizinha ganhou um tamanco
Bruxas mortas no adro da São Francisco
Papagaios coloridos voando no vento frio
Fitas engomadas e cabelo ao meio
Meus pais me ensinando a falar
Vultos puros e extasiados
Sorriso pequeno sob o cavanhaque
E, com esforço, pronuncio “flor”
Pedalo,pedalo, pedalo
Risadas na sacristia
Cetim colorido e flores na cabeça
Asas de mentira
Anjos de verdade
Aos pés da santa
Pendurados no altar
Apinhados nas grimpas do Pilar
E algum santo forte pra proteger
Aquele frágil baralho de cartas
Pedalo,pedalo,pedalo
Engatinho pelo chão de pedra
A casa de Domitila cheira a sopa verde
Playmobils espalhados no tapete
E volto do Educandário com Maria
Frente ao cemitério sinto calafrios
Caveiras andam pelos becos frios
E sussuram versos junto ao meu ouvido
Em algum lugar da casa há uma prateleira
Cheia de doces e balas de coco
Quem me disse foi o amigo morto
Que comigo brinca no porão à noite
E a cama de viúva era meu refúgio
Até que foi vendida para Nídia Ramos
Pedalo, pedalo, pedalo
Volto ao chão de pedra em casa de Domitila
Agora sete rapazes me cercam encantados
Em flor desabrocho sem meus óculos grossos
A beleza típica dos tenros anos
Pele lisa e olhos puxados
Sobrancelhas virgens
Batom cintilante
O rosto redondo
Misto de oriente, meio art nouveau
Pedalo,pedalo,pedalo
E agora mortos de Vila Rica são heróis pra mim
Conspiram triângulos frente a velas flamejantes
E cada pedra guarda um segredo
Piso onde pisou Marília
E onde morreu Cláudio
A morte agora faz todo sentido
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.