Crônicas

Você passeia de Rolls-Royce no meu coração

“_ Blima, Blima, Blima. Você passeia de Rolls-Royce no meu coração!”, dizia Tio Décio quanto eu ia visitá-los no Castelinho.

E continuava: “_ Você é o alfinete da minha fralda”. Bem se vê que ele já passara dos 70 e não pegou o advento das fraldas descartáveis.

Tinha cheirinho agridoce de cigarro misturado com paçoquinhas. Que ele sempre me pedia assim que eu chegava. E eu, prontamente, as trazia: diets, é claro, por causa da diabólica diabetes dele. Essa abria um buraco maldito em sua perna, que ele sempre tampava com seu bom humor.

E passávamos tardes compridas, quentes e ensolaradas, em torno de sua fumaça. As cinzas eram jogadas num cinzeiro de louça em forma de caju.

Me ensinou que nas casas chiques se servem bebidas em copos transparentes. Os de cor camuflam a análise dos gourmets. E me disse que as facas deveriam ficar à esquerda no mise en place, para que cavaleiros mais afoitos não quisessem matar o vizinho. Isso, claro em priscas eras, mas a etiqueta continuou. E o maior número de destros, como se imagina também…

Era inteligente por todos os convivas e tratava de rechear as conversas com os mais variados assuntos. Arquiteto e urbanista, pegava uma folha de papel e desenhava brincando a planta de Roma, Paris, Londres, Praga, Moscou, Bruxellas, de toda a Europa, Estados Unidos e Américas, e não duvido, até da Ásia e seus tigres abastados.

Devorava livros desde sempre e tinha memória fotográfica. Deixando-nos a todos, os simples mortais, com a sensação de sermos ainda mais burros que os próprios burros.

Tinha um elã danado. Sex appeal, sabe? Falando claramente: um borogodó imenso.

Deixou muitas apaixonadas; algumas ricas, outras nem tanto. Diziam a boca grande que uma magnata de São Paulo queria ir buscá-lo de helicóptero. E outra, mais exotérica, propôs a ele o sexo tântrico…

Lia a mão de todos e bagunçou a escala do Hospital Beneficência Portuguesa, pois todas as enfermeiras queriam atendê-lo, para saber de suas previsões e receber seus galanteios.

Apreciador das mulheres que era, se divertia com isso tudo, mas se dizia um santo nos últimos anos. “_ Minha filha, tomo 8 pílulas por dia, mas nenhuma é azul…”, reclamava. “_ Lá embaixo o relógio só marca seis e meia.”

Mas, apesar disso, uma semana antes de morrer ainda recebeu proposta de casamento. Esta eu presenciei, mas não conto o nome da moça. “_ Décio, te dou cama, comida e roupa lavada.”, E ele desconversou.

Mas o olhar para esquadrinhar as mulheres era sempre aguçado.

Dois olhos negros se destacavam na pele clara, quando uma moça se aproximava. E ele a medida de cima embaixo. E, se o material agradava, dizia: “_ Fulana, estás com uma lataria…”

E dava mais um trago no cigarro e pedia mais um bocadinho de doce. Nunca enchia o pratinho. Ia de pouquinho em pouquinho, para nos enganar. E repetia duas, três, quatro vezes, até se fartar.

Alguns desavisados perto dele poderiam ter um ataque fulminante de riso. Humor refinadíssimo e debochado. Por vezes, desbocado.

Dizia que duvidava que Jesus teria resistido aos encantos de Madalena. Ainda mais quando esta lhe enxugou os pés com os cabelos…

“_ Há minha filha, e você acreditou?”

Quando algum imbecil ficava a ver navios, e boiava nas piadas, gritava: ” Ahhahhhahhahhh”. Dizia que a perna estava doendo, mas no fundo não suportava era a ignorância.

Pudera, era brilhantíssimo, mas sem nenhum traço de ostentação. Dava aulas sobre a Bíblia e tinha uma interpretação cômica para todas as passagens (ainda hei de resgatá-las). Juro que conseguia explicar todo o imbróglio do Oriente Médio. E as origens de curdos, burgos, bárbaros e príncipes.

Enciclopédia ambulante, era músico, pintor, cantor, historiador, crítico de arte e dava aula de Arquitetura no curso de Engenharia no Fundão, Rio de Janeiro. Suas aulas eram disputadas por alunos de outras classes.

Estudou na Escola de Arquitetura da UFMG, quando se abrigou na casa do Tio Waldomiro Lobo, casado com Eugênia Bracher.

Certa vez tentou passar cola no Vestibular de Arquitetura para o irmão Carlinhos: foi para o campo de basquete e desenhou uma bendita fórmula em letras garrafais. Resultado: todas as provas foram anuladas.

Serviu o CPOR. Quando era dia de corridas exaustivas na tropa de cadetes, combinava com meu avô, que iria discretamente ficando para trás. Então pegava carona com vovô Brachão num atalho e, para surpresa de todos chegava em primeiro lugar.

Foi passar lua-de-mel em Lambari, com minha saudosa tia Shirley. E contava detalhes:” _ Minha filha fui escalado para o papel de Adão, mas tive que bancar o Tarzan naquela selva de pernilongos, muriçocas, aranhas e lagartixas.”

Politicamente incorreto, dizia que adorava bichos: nas telas, nos zoológico ou nas panelas.

Sua segunda namorada, a Bebel, deu trabalho. Mas isto é caso pra outra crônica.

Só adianto que ela era filha de militares e se soltava quando bebia umas e outras. ” _ Liberava a pomba-gira, minha filha”.

Mas ele sabia se proteger, afinal, dizia que seu anjo da guarda tinha uma imensa capa, bordada com ouro e rubis.

Texto de Blima Bracher, em 24 de fevereiro de 2015

Em memória de meu grande e inesquecível Tio Décio Bracher, cuja saudade, nesta época do ano, me aperta ainda mais o coração.

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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