Categories: Crônicas

Não foi com medo de avião, crônica a Belchior

Fico me perguntando: qual seria o primeiro nome de Belchior?

Assim como este, outros enigmas rondam a vida do cantor. Talvez seja este o privilégio dos mitos: nascerem rodeados de mistérios e encantos. E assim permanecerem, envoltos em brumas, em vida, e mesmo depois da morte.

Acordei hoje com a notícia de seu passamento, aos 70 anos, já recluso e avesso aos holofotes. Lembrei-me dele em alguns contatos, destes inusitados. Como se, por alguma mágica, se materializasse em minha frente aquela voz rouca, quase que abafada pelo grande e farto bigode.
A primeira “aparição”, foi na extinta Casa do Forró, em Juiz de Fora. Abracei-o no camarim, como uma dessas fãs anônimas na multidão e que ainda não se sabia tão fã.

Meses depois, ele bateu na casa de meu pai, Carlos Bracher, em Ouro Preto. Fora depois de uma apresentação no Festival de Inverno, creio eu, naqueles idos tempos dos bons encontros ouro-pretanos.

Diante do belo modelo, papai paralisou. Esquadrilhava cada pedaço do rosto forte e anguloso, coberto por cabeleira e alinhavado pelo bigode. Tinha uma pinta, no lado esquerdo do rosto, mal centralizada entre os olhos e a proeminente mandíbula.

Em alguns minutos de conversa, que precederam a pintura, Belchior, ex-seminarista, deixou Bracher encantado com sua vasta cultura: recitava trechos inteiros de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri.

Sentaram-se frente a frente, no atelier. Como um touro que mira o toureiro, ou a esfinge que diz “ – decifra-me ou te devoro”.
Belchior sentiu o peso de ser desnudado naquele momento. Olhou ao redor e bateu seus olhos em mim: uma menina jovem e acostumada aos embates entre modelos e criador no velho atelier de meu pai.

Tomou-me a mão, com suas mãos enormes e quentes. Deslizou por entre os pelos um grande anel, com pedra avermelhada e grossa armação em prata.
Pediu que eu o mantivesse comigo, durante o retrato. E eu lá permaneci, vendo aquele rosto se transfigurar para a tela, naquela osmose materializada pela talentosa mão de meu pai.

Ao término, como sempre, Belchior não sorriu, apenas arqueou a ponta do bigode, apertando os olhos, num claro gesto de surpresa e aprovação ao que acabara de presenciar.

Eu ainda torci para que ele se esquecesse do anel, e comigo deixasse aquele amuleto de sorte.
Mas, ao se despedir, o rapaz latino americano me pediu de volta seu guia.

E foi assim, e não “com medo de avião”, nossa breve aliança.

Retrato de Belchior, pintado em Ouro Preto, por Carlos Bracher

Com:

#blimabracher @blimabracher

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

Ver Comentários

Posts Recentes

Balanço da Cobra completa 50 anos no Carnaval de Ouro Preto

Em 2025, o Carnaval de Ouro Preto será marcado por uma celebração especial: os 50…

14 de janeiro de 2025

Inscrições para solicitação de serviços de máquinas agrícolas

A Secretaria Municipal de Agropecuária deu início ao período de inscrições para a solicitação de…

14 de janeiro de 2025

” A fé que canta e danca” encanta Ouro Preto até domingo

Ouro Preto iniciou o ano de 2025 com o evento “A Fé que Canta e…

10 de janeiro de 2025

Ouro Preto realiza força-tarefa no distrito de Santa Rita depois das fortes chuvas

Imagem: Divulgação Defesa Civil Na noite da última segunda-feira (6), o distrito de Santa Rita,…

10 de janeiro de 2025

Natal de Ouro Preto atrai 90 mil pessoas e gera 21 milhões.

Do dia 23 de novembro de 2024 a 6 de janeiro de 2025, Ouro Preto…

6 de janeiro de 2025

Ouro Preto terá queima de fogos silenciosa na Praça Tiradentes

Imagem: Ane Souz Por: Vívian Chagas A Prefeitura de Ouro Preto, por meio da Secretaria…

28 de dezembro de 2024

Thank you for trying AMP!

We have no ad to show to you!