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Crônica: “Nossos Castelos em Chamas”

Lembro-me como se fosse hoje do dia em que visitamos a Quinta da Boa Vista no Rio. Duas vezes por ano, papai nos levava para uma semana cultural na capital carioca. Era uma maratona de museus, teatros, cinemas e exposições. Chegávamos exaustas e éramos acalentadas pelo sorriso de “Seu” Humberto, gerente do Apa Hotel, na esquina da Barata Ribeiro com a República do Peru. Ah! E pelo ar condicionado, sempre gelado,  que nos livrava do calorão da Cidade Maravilhosa.

No dia da visita à Quinta acordamos cedo, pois papai disse que São Cristóvão era um bairro mais afastado. Lembro-me das recomendações de “Seu” Humberto com relação a carteiras e máquinas fotográficas, pois os jardins do museu costumavam esconder malandros em busca de turistas deslumbrados. À tarde, ainda daríamos um pulo no MAM, onde veríamos pela primeira vez o magnífico universo recriado pelas mãos de Arthur Bispo do Rosário.

Vesti meu macaquinho de linho amarelo e partimos rumo à residência da monarquia imperial brasileira. Tinha uns 14 anos na época e, gulosa como sou,  paramos para comer algodão doce.

Quanto adentrei aquele palácio, logo me chamou a atenção um fóssil imenso, que reproduzia um esqueleto pré-histórico. Algo entre um dinossauro ou uma preguiça gigante, que visualizo na mente  com perfeição até hoje.

Foram salas e salas de quadros retratando a pompa imperial, louças, talheres, as coleções de Dona Leopoldina, nossa imperatriz austríaca, da casa Habsburgo, apaixonada por ciência. Chegou com sua comitiva e , dizem, valorizava mais seu herbário, suas pedras, e livros que joias e vestidos. Apesar das agruras por causa das estripulias de Dom Pedro, a família parecia sempre feliz nas telas.

Aliás, naqueles jardins o intrépido Pedro I corria solto e aprendeu a cavalgar. Imagino o moleque lindo, com cabelos cacheados e bochechas vermelhas sempre indo um passo à frente do que pediam os tutores.

Fruto deste casamento entre os Bragança e os Habsburgos, nasceu Pedro II, talvez dos mais esclarecidos, atuantes e modernos governantes que o Brasil já teve. Devemos a Pedro II, muitas das grandes conquistas nacionais, a abertura de escolas, universidades, os avanços nas artes, cultura, ciências e tecnologias a que se podiam dispor na época.

Havia imensa coletânea de objetos das tribos indígenas brasileiras. Registros dos nativos, de quem descendo por parte de pai. Etnia à qual atribuo meus olhos puxados.

E também aquelas paredes guardavam registros da escravidão no Brasil. Joias creoulas, tambores, atabaques e objetos de tortura. Memória viva de um erro enorme, que jamais deve ser esquecido, das agruras e maldades que nós, seres “humanos” fomos capazes de cometer.

Lembro-me de um quadro que explicava as origens geográficas das etnias do mundo e, como no Brasil, nos tornamos uma nação mestiça, com diferentes fenótipos e genótipos inimagináveis, depois da vinda dos colonizadores, africanos escravizados e imigrantes, unidos aos nativos da terra.

Paramos eu e minha irmã para um registro numa das imensas janelas da casa.

Ouvi até uma história mal assombrada. Um dos esqueletos ali expostos, seria de Piau, terra da minha mãe, cujo apelido era Fermanguinho. Dizia-se em Piau, que Fermanguinho fora enterrado três vezes e conseguira, misteriosamente,  sair da tumba, onde o defunto se recusava em ficar. Teria sido terrível em vida.  Reuniram-se as autoridades de Piau e resolveram despachar o esqueleto para servir de objeto de estudo na Quinta. Pois não é que a redoma de vidro em que ficava, curiosamente, tinha o apoio de concreto todo craquelado em trincas, como se dali, Fermanguinho também quisesse fugir…

Confesso que sempre tive curiosidade por história e verdadeira paixão pela época dos impérios, a ponto de devorar livros e mais livros, tentando entender os inimagináveis acordos entre dinastias europeias e suas colônias tropicais: Braganças, Habsburgos, Tudors, Bórgias, etcs,  e as alianças consanguíneas estranhas, do tipo fulano que era cunhado de beltrano e primo do fulano se casou com a sobrinha de seu titio avô.

Hoje, vemos o descaso do país, que expõe tão valioso tesouro ao risco de tamanha tragédia. Onde estavam os seguranças, onde estava o sistema antiincêndio? Onde fora parar o relatório que atestava há anos a precariedade a que essa casa, pertencente a todos nós estaria exposta? Seria como Paris perder o Louvre, ou Versailles.

Meu Deus, o que foi isso? A imagem de pavor que me remeteu à queima de bruxas na fogueira devorando inclemente nosso passado. Múmias retorcidas em seu repouso eterno, Luzia, tumbas faraônicas, quadros, joias, escudos, peças de vestuário, objetos diários, tudo, reduzido a pó.

Será que depois de queimado, finalmente,  Fermanguinho ganhará seu repouso eterno?

Fico aqui me perguntando: que país é esse, que comete os mesmo erros do passado? Igrejas barrocas em chamas, o Museu da Língua Portuguesa, o hotel Pilão em Ouro Preto?

Lembrei-me até de um curioso episódio: depois de queimada uma das casas na Rua São José, em Ouro Preto, os bombeiros deram lugar ao pintor Ney Cocada para registrar na tela aquele trágico momento. Para surpresa de todos, Ney Cocada havia pintado uma cena de Copacabana.

Ele, na verdade, era o único são entre todos. Vivemos num hospício e tachamos de loucos os Van Goghs, os Artauds, os Arthurs Bispos e os Neys Cocadas da vida.

Obs.: Imagem de reprodução

Abaixo, papai, mamãe e Valentim em visita à Quinta. Foto de Larissa Bracher

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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  • Meu Deus, há poucos dias vendo tantas notícias negativas sobre o Rio, pensei comigo, que este palácio ainda era um dos poucos lugares da cidade, que ainda guardava um pouco do respeito e dos valores da antiga "Cidade Maravilhosa", e agora isso... Que pena!

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