Crônicas

“Ai como era grande”: homenagem a Jô Soares

Jô Soares fazia parte de uma utopia coletiva onde acreditávamos na vida, como água perene que corre rumo ao encontro tranquilo de noites com o amante. Não íamos pra cama sem ele e isso regulava nossos hormônios.
Ainda ríamos, afrouxando o paletó, sem tantas culpas ou caretices.
O Brasil era um menino, nascido de classe média, aluno de colégio católico e cuja estrela e brilho não foram forjados em escritórios, logomarcas, torcidas de auditório ou testes de sofá.
Jô nasceu pra brilhar, foi lá e fez. Criou personagens, livremente, sem patrulhas do politicamente correto, pois seu Capitão Gay era o puro orgulho de ser gay. Praticamente um prenúncio das paradas.
O micro Reizinho de: “o que é que eu sou “? – “Sois rei, sois rei, sois rei”, aclamado por um coro uníssono de papagaios de pirata.
“ Ai como era grande, a tentação de Frei Serapião”, se benziam Frei Cosme e Damião, com a batina do hilário partner, Paulo Silvino.
Bô Francineide e o bordão da pornô-mãe: “E pensar que eu sai de dentro dela”.
Era muita bubiça que não tava de bobeira.
“Madalena, você não quer que eu volte”?, gritava um incrédulo marido Pierre, ao saber pelo telefone sobre as notícias do Brasil.
Vovó Naná, que queria a fama. Dom Venturoso, que vinha de Portugal dar notícias da antiga colônia. Júlio Flores, o anarquista das greves.
E o bordão “Muy amigo”, que não sai de nossas bocas?
Melhor era o general, hospitalizado e inconformado com o fim da ditadura. “Me tira o tubo”… Ah essa era muita boa.
Ciça Ruliça, rata de academia.
Kid Frutuoso, o punk de boutique.
E o que dizer de Dom Casqueta, chefe de máfia que não prosperava por causa da desorganização do Brasil?
E Múcio, o eterno influenciado, que em cima do muro, completava as conversas com um “tirou daqui, ó”, apontando a língua.
Tinha o indiscreto espelhinho de dentista que num descuido virava e exclamava: “bocãoooo” .
Cada um desses quadros bastaria para revelar o gênio, que não se contentou em fazer rir: dirigiu, escreveu, foi ator, dramaturgo, cineasta e entrevistador.
Jô era água de mar, infinito, refrescante, mas salgado, manso ou agitado, habitat de tartarugas e tubarões.
Em suas entrevistas tirava pérolas tanto de estrelas, quando de ilustres desconhecidas. Não se apoiava em famosos, pois era o próprio sol da bancada.
Isso irritou muita gente; “Ele não deixa ninguém abrir a boca, quer brilhar mais que todo mundo”.
Fazer o quê. Quem é bom, pode. E quem não pode, se sacode.
Pois palco se conquista. E ele conquistava, dançava, sapateava, tocava, galanteava, paquerava, desmunhecava e se balançava até afrouxar o cinto.
Tá certo que, às vezes a gravata apertava e ele precisava desatar o nó.
Não gostava de doce de coco.
E a gente neste vai e vem pandêmico tem que engolir mais essa: até Jô morreu.
Morreu sufocado, oprimido, calado, deixou gosto de que podia mais.
Se Jô morre, a vida tem menos sabor de eternidade. Nossos relógios biológicos, já tão desregulados pela pandemia, agora nos açoitam com a brevidade da existência. Onde o Covid botou uma roleta russa em nossas testas, jovens ou velhos, crianças ou não.
Hoje, um Brasil traído, acorda chorando este amante das madrugadas: “Ai como era grande a tentação de São Serapião”.Foi              Fotos de divulgação.  Blima Bracher http://@blimabracher #blimabracher 

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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