Capítulo 1
Vestígio do mensageiro
“Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação de minha” Joaquim
Amasso o pedaço de papel com um chumaço de cabelos pretos e ondulados, caindo do envelope, selado apenas com cera, sem brasão.
“Então é verdade, continua atrevido, mesmo preso aos grilhões, nas masmorras de Portugal, no Rio de Janeiro”, penso eu, tratando de queimar o papel.
No armário, pego meu lenço de seda azul e enrolo o cabelo ainda com cheiro de alecrim e suor.
Procuro por montaria solta ou vestígio do mensageiro. Cavalos sem estribo e arreio, livres pela rua eram sinal de algum carteiro secreto. Vejo o cavalo cinza sob a lua, mas, há essa hora, o encarregado de me entregar a carta já devia ter pulado muro e se recomposto, livrando-se de capa e capuz.
“Espero que esteja longe”.
Fixo meu olhar no espelho. Sou Lira. O ano é 1789, em Vila Rica das Minas Gerais. Tenho 22 anos e estou noiva do neto dinamarquês da madrinha Lilli.
Apesar do casamento próximo, não consigo parar de pensar no Corta-Vento. Ainda mais com o cheiro forte dentro do quarto.
Joaquim tinha agora 42 anos e estava preso numa cela, como bandido, posto a ferros.
Logo ele, que amava a liberdade?
Logo ele, de correr chão batido a pé ou montaria, chispando como o vento às margens do Rio das Mortes?
Logo ele de abrir o Caminho Novo, ao regimento impondo trote?
Logo ele de contar estrelas na Fazenda do Pombal sem jaula para lhe enquadrar visão?
Aqueles cabelos negros cortavam o ar feito navalha, se presos em rabo sob o chapéu de alferes, ou dançavam como ciganos, quando a juba estava solta, nas folgas do regimento.
Costumava botar alecrim atrás da orelha.
− “É para acalmar o coração dos pacientes”.
Lembrava a época de bom boticário, antes da cavalaria, que lhe rendeu a carinhosa alcunha: Tiradentes. E já tentava melhorar a vida dos colonos pobres, restaurando bocas com pedaços de ossos de animais ou lascas de cascos de cavalo. Também extraía tumores e aplacava dores, como as deixadas em seu peito pela portuguesa Maria Gracinda.
Mas isso é coisa pra depois.
“Agora, é preciso ação”, penso respirando em taquicardia.
Capítulo 2
Sob a luz do candeeiro
Era noite de 10 de maio de 1789, quando a porta da casa de Domingos Fernandes da Cruz, no Rio de Janeiro, foi posta abaixo. Leram a ordem de prisão, sob fraca luz de candeeiro. O alferes Joaquim José da Silva Xavier era acusado de alta traição à Maria Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana de Bragança, Dona Maria I, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
O alferes foi preso na capitania do Rio, onde se refugiou depois que a insurreição contra a Coroa Portuguesa foi delatada
Uma delação premiada, já que um dos conjurados, o barbacenense Joaquim Silvério dos Reis devia a Portugal e contou sobre a Inconfidência Mineira em troca do perdão de suas dívidas.
O susto inicial da invasão fora tomado por uma calma inesperada naquele corpanzil.
Ao se por de pé, o porte altivo de Joaquim ofuscou os demais na sala, seu cabelo longo e preto, a pele bronzeada pelo sol da montaria, os olhos serenos, como duas azeitonas a serem colhidas, o nariz marcante e a musculatura atlética das maratonas, do alto de seus 1m85 de altura.
Encorpou-se, como se passasse vista em tropa de cavalariços, e disse em alto e bom tom:
−”Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação de minha Pátria”.
E foi levado, puxando o bando, com o sentimento de que entre todos ali era o mais corajoso e puro de coração.
Capítulo 3
A inconfidente Hipólita
O alferes se encontra a ferros já no Rio de Janeiro. A notícia chega à Fazenda da Ponta do Morro, em Prados, onde, muitas vezes, os Inconfidentes se reuniram sob as bênçãos da Hipólita Jacinta Teixeira de Melo.
Filha de portugueses, Hipólita é culta e a mais rica fazendeira dos arredores do Rio das Mortes. Sua residência em Prados era de se apreciar: decorada com peças importadas, tapeçarias e porcelanas. Casou-se aos 33 anos com o coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes e adotou dois filhos.
Um deles, diziam na Vila Rica, seria o filho da irmã caçula de Dona Bárbara Heliodora, mulher de brio, esposa do poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto. O casal era dos mais atuantes no apoio à causa separatista.
O bebê foi batizado Antônio Francisco Teixeira Coelho, que era pra esconder vergonha da gravidez adolescente de Maria da Silveira Bueno. Coitada, ficou falada, mesmo a Hipólita tendo adotado o Antônio. A língua do povo rasgava a moral das moças como punhal em carnes de Julieta.
“Coitados, já devem estar aflitos no arraial de São João del’ Rey” o Alvarenga Peixoto e a Bárbara”.
Pensava eu, já que a notícia da delação se espalhou como tempestade nas Minas Gerais.
Destemida e de dar ombros ao falar do povo, Hipólita, em sua casa, fazia reuniões com os descontentes com a Coroa Portuguesa e sua exploração da Colônia tropical.
A verdade é que a relação dos colonos com a Coroa não era das melhores e, principalmente, uma elite mais estudada e com acesso aos movimentos separatistas de França e Estados Unidos estava inspirada e disposta aos ideais de libertação.
No século XVIII, o aumento dos impostos e a política fiscal que exigia mais e mais ouro, deixava a população revoltada. Com Lisboa destruída pelo terremoto de 1755, o Marquês de Pombal, exigia as tripas do Brasil, com sua maldita política “pombalina.”
Vem da Hipólita a opção derradeira da Conjuração Mineira: encorajar o povo das Minas a transformar ferramentas em armas e resistir:
“Dou-vos parte, com certeza, de que se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério dos Reis e o alferes Tiradentes, para que sirva ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”.
Brada a Inconfidente, num último plano, o militar, como pensaram, em derradeiro, os conjurados.
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