Crônicas

Porque se mata por ciúme?

Obcecado por pensamentos de infidelidade, Othelo acusa Desdêmona, de traição. Ela jura inocência, mas envenenado pelo ciúme ele sufoca a esposa até a morte.O crime passional descrito em Othelo, o Mouro de Veneza, tragédia de Shakespeare, inspirou estudiosos do assunto a classificar o comportamento homicida, motivado por ciúme, de Síndrome de Othelo.
Para entendermos melhor o problema, é preciso deixar claro que nem todo ciúme é destrutivo. Ao contrário, explica a psicanalista Alda Cristina Vilas Boas, “na dose certa, o sentimento é normal e inerente à natureza humana. Seria um comportamento de defesa da espécie e preservação do par”. Sentimento tão primitivo que “pode ser visto em animais, como cães e gatos de estimação”, acrescenta a psiquiatra Solange Mascarenhas. A origem etimológica da palavra vem do grego celus e do latim zelumem, termos traduzidos como zelo. Neste sentido, podemos identificar o ciúme normal como “zelo ou sentimento de preservar os limites de privacidade do casal. Há também o ciúme fruto de situação real: ocorre quando houve traição e quem foi traído passa a sentir desconfiança. Este ciúme traz muita insegurança, mas também é normal”, explica Vilas Boas.
Mas, quando cruzamos a tênue linha da normalidade e atingimos o terreno da patologia? Isso acontece quando não existe um fato gerador, só na cabeça do ciumento. “É uma convicção baseada num postulado falso”, explica a psiquiatra Solange Mascarenhas. Outra característica da Síndrome de Othelo é a anulação do outro, ou seja, ele deixa de ser visto como um ser humano, dotado de sentimentos e liberdade para se transformar num objeto meu. “Na cabeça do ciumento ele tem inclusive o direito de eliminá-lo, de dispor da vida do ser amado como bem entender”, diz Mascarenhas.
Outro sintoma típico do ciúme doentio é quando a relação deixa de ser prazerosa. O ciúme passa a ser o evento principal da relação, o amor cede lugar ao ódio e à desconfiança. “Surge um comportamento tirânico do ciumento em relação ao objeto do afeto. Ele se torna eixo de toda a vida emocional. Às 8 horas acorda e vai para a porta da pessoa ver se ela saiu no horário. Ao invés de ir para o trabalho vai verificar à tarde se a pessoa foi ao dentista como falou”, exemplifica Solange. Assim, o ciúme passa a interferir no trabalho e em outras esferas da vida do ciumento.
Foi o que viveu Gabriela* ( nome fictício). “Fiquei dez anos da minha vida movida pelo ciúme doentio. Poderia ter estudado mais, me empenhado na profissão e hoje estaria numa situação melhor.” Mas não foi só profissionalmente que a advogada perdeu. “O relacionamento começou quando eu tinha 19 anos e o ciúme foi num crescendo. Ele não me dava motivos, mas eu enxergava segundas intenções em tudo: vasculhava celular, e-mails, agendas, cheirava roupas. Cheguei a invadir o trabalho de uma ex-namorada dele e ameaçá-la. Estraguei a festa de aniversário de nossa filha, uma criança de seis anos. Quebrei a televisão na frente da menina. Mas o pior dia foi depois de um churrasco: só porque ele cumprimentou uma moça , na volta para casa tomei a direção e joguei o carro em direção a lagoa da Pampulha. Nossa sorte foi que ele conseguiu segurar o volante”. Hoje, depois de freqüentar o grupo de apoio Mulheres que Amam Demais Anônimas – MADA–, fazer análise e tomar antidepressivos, Gabriela* retomou a relação e finalmente vai casar. “Quase perdi o amor da minha vida, mas sei que sou como um alcoólatra que não pode dar o primeiro gole. Tenho uma doença que está controlada, mas não tem cura”, reconhece.
O ciúme patológico pode ou não vir associado a outras doenças psiquiátricas. Existem ciumentos mórbidos que não chegam a ter doença mental. “O que vemos nesses casos é uma codependência afetiva e o ciúme aparece como sintoma deste “amor sem limites, possessivo”, explica Alda Vilas Boas. “Sinais dessa codependência são: querer agradar demais, tomar conta dos outros, excesso de zelo, ser muito prestativo. São pessoas que fazem qualquer coisa para impedir o fim do relacionamento. A auto-estima, está criticamente baixa e elas não acreditam que mereçam ser felizes. Não se acham dignas de afeto e costumam ter atração por homens ou mulheres problemáticos, comprometidos ou com algum outro impedimento”, diz a psicanalista. É um comportamento que tende a se repetir, uma espécie de escolha inconsciente. O codependente pode encontrar no atendimento psicológico e nos grupos de ajuda grande possibilidade de recuperação.
Mas, o ciúme mórbido também pode ser observado em associação a diversas doenças psiquiátricas. “Este sentimento no cunho psiquiátrico costuma vir acompanhado de alcoolismo (geralmente a pessoa se descuida, perde a forma física, torna-se impotente e passa a se sentir ameaçada), dependência química, demências mentais ( começa na velhice, principalmente por parte do homem quando se torna impotente), transtornos graves de personalidades, como personalidades paranóides, que podem ir evoluindo para psicoses mais graves. O ciúme doentio pode aparecer como um primeiro sintoma de esquizofrenia”, afirma Solange Mascarenhas. Ângelo* se apaixonou por uma colega de escola. Chegava para a aula às 5 da manhã, apesar da primeira classe começar às 7h30. Fumava feito louco até ver a amada chegar. Mesmo sem ser correspondido, sentia-se dono da menina. “Certa vez cheguei a levantar o professor pela gola, só porque achei que ela olhava diferente para ele. Já ameacei pular do prédio da escola porque ela não queria ficar comigo. Num outro episódio soquei a janela de vidro e me cortei todo pelo mesmo motivo”, lembra. Preocupada, a família procurou um psiquiatra. Ângelo* apresentava quadro de esquizofrenia. Foi internado. Hoje, a doença está sob controle.
Dentro destes quadros associados a doenças mentais, a psiquiatra identifica ainda dois graus de ciúme patológico: um mais brando, onde ainda cabe a dúvida e um mais agudo ou delirante. Onde existe dúvida, costumamos identificar ciumentos que sofrem de transtorno obsessivo-compulsivo: eles têm necessidade de verificar várias vezes agendas, celulares, e de realizar interrogatórios intermináveis para se convencer da inocência do amado. Já o ciumento delirante tem certeza da traição, apesar de evidências contrárias. “Cria um script na cabeça e acredita piamente naquele enredo”, explica Mascarenhas.
A veterinária Fernanda* conviveu com um ciumento delirante. “Se olhasse para o lado estava dando mole para alguém, se alguma mulher me olhava era homossexual. Criava as fantasias e acreditava naquilo, não adiantava negar”, lembra. Como era rakker, instalou um programa, sem minha autorização, no meu computador e controlava meu msn, meu e-mail e meu facebook. Deletou amigos do site de relacionamento, mas, a gota d’água foi quando apagou um arquivo antigo, onde eu guardava trabalhos, currículo e outros documentos”, lembra. Apesar de ainda gostarem um do outro, Fernanda* preferiu por ponto final ao relacionamento.
A atitude de Fernanda* foi correta, afinal, não raro, casos de ciúme patológico terminam em crimes passionais (ver abaixo). Neste casos, o que difere são os perfis dos criminosos. O psicótico explica Alda, ao contrário de pessoas normais, que podem até ter o desejo de matar, mas ficam no campo imaginário, “pode decidir resolver seus problemas numa atuação real.” Pode acontecer, ainda, o caso de uma pessoa considerada normal matar por ciúme. “Nestes casos há uma insanidade momentânea provocada por desespero”, diz Alda. “São os crimes que acontecem no calor das discussões ou numa cena de traição e quem mata costuma sentir tanta culpa que se mata em seguida. Já o psicopata, o sujeito perverso, premedita o crime, mata sem culpa e sem sombra de arrependimento.” Para esses, não costuma haver cura.

FREUD EXPLICA:
Ciúme normal: para Freud, no ciúme normal o que está em jogo é um mecanismo de defesa e proteção. Nós projetamos fora de nós desejos e ambições. O sujeito que tem ciúme normal, na verdade, ele próprio queria trair. Ele projeta no outro o próprio desejo de traição.
Ciúme patológico: pode ser expressão de um desejo homossexual. O ciumento se identifica com o sexo oposto e inconscientemente deseja o mesmo objeto de desejo do outro.

Autora do livro A Paixão no Banco dos Réus, a procuradora de justiça Luíza Nagib Eluf, fez um estudo detalhado sobre 14 crimes passionais famosos e fala sobre o assunto ao site blimabracher.com.

BB: Existe algo em comum, um traço de personalidade, que possa ser identificado nos criminosos que matam movidos por emoções e passionalidade?
Luiza Eluf: Sim, Em geral, são homens de meia idade, muito possessivos, ciumentos e obcecados. Acham-se superiores às mulheres, querem dominá-las de todos os modos. Não suportam a idéia de serem trocados por outro. Dão sinais de que poderão agir violentamente, costumam ameaçar e, por vezes, agredir por ciúme. Na maior parte das vezes nunca mataram ninguém e sua conduta violenta é, principalmente, em relação a uma mulher específica. Dificilmente matam mais do que uma vez.
BB:O ciúme é a mola propulsora de crimes passionais?
Luiza Eluf: Sim, o crime passional é cometido por ciúme, mas, também por machismo. Quando a mulher reage e decide pôr ponto final na relação, ele pede de volta objetos dados como presentes. Incrédulo, pois se considera dono da mulher, tira a vida dela. Às vezes, não suporta a perda da amada e, depois do crime, comete suicídio.
BB: Existe “privação de sentidos”, em algum instante ou os crimes são premeditados?
Luíza Eluf: Em geral , os crimes cometidos por ciúme e pelo inconformismo com o fim da relação são premeditados. O sujeito procura surpreender a vítima de forma que ela não consiga se defender.
BB:Existe diferença no comportamento de homens e mulheres que cometem estes crimes?
Luíza Eluf: Sim, as mulheres, em geral, não cometem crimes e é muito raro que matem por ciúme. No entanto, quando o fazem, agem por impulso e usam a arma da vítima.

SINTOMAS DO CIÚME PATOLÓGICO:

-Não existe fato concreto, o ciumento cria o enredo da traição e acredita nele, apesar das evidências contrárias. Enxerga segundas intenções em tudo.
-Há anulação do outro como ser humano, ele passa a ser visto pelo ciumento como mero objeto, do qual ele pode dispor como bem entender
-A relação deixa de ser prazerosa. O amor cede espaço ao ódio. As brigas são constantes
-O ciúme passa a ser linha mestra na vida do ciumento, com alteração da rotina para vigiar horários e conferir os passos do outro
– O ciumento perde a referência social passando a dar escândalos em público e ameaçar pessoas
– O ciúme vem associado ao transtorno obsessivo-compulsivo, com rituais de conferência de agendas, celulares e e-mails, mania de cheirar objetos e interrogatórios repetitivos

CRIMES PASSIONAIS QUE CHOCARAM O PAÍS:

Dilermando de Assis mata Euclides da Cunha

A história inspirou a minissérie Desejo da Globo. Autor de Os sertões, Euclides da Cunha tentou matar o tenente Dilermando de Assis, amante de sua mulher Anna da Cunha, mas foi alvejado por Dilermando e morreu em 1909, no Rio.

Doca Street mata Ângela Diniz
Raul Fernandes do Amaral Street, conhecido como Doca Street, foi condenado a 15 anos de prisão pelo assassinato da namorada Ângela Diniz, a Pantera de Minas. O namoro durou quatro meses e Ângela foi morta com três tiros no rosto e um na nuca.
Pimenta Neves mata Sandra Gomide
Típico caso de homem mais velho que se acha dono da namorada. Pimenta Neves se achava responsável por tudo que Sandra, sua subordinada possuía, desde emprego, salário e amigos.

Guilherme de Pádua e Paula Thomaz matam Daniella Perez
A atriz foi morta num matagal no Rio, aos 22 anos em1993, pelo ator Guilherme de Pádua, com quem contracenava na novela De Corpo e Alma, da Globo e pela mulher dele, Paula Thomaz, que estava grávida de quatro meses.

Dorinha Duval mata Paulo Sérgio Alcântara
A atriz global matou com três tiros o marido com quem estava casada havia seis anos. Ela contou à polícia que Paulo Sérgio, 16 anos mais jovem, a chamava de velha e dizia que só apreciava mulheres mais jovens.

Edina e Ethel Poni matam Maria de Lourdes Calmon
O caso foi exibido no extinto programa linha direta da Globo. Em 1964, Edina e Ethel Poni foram a julgamento na cidade de Ouro Preto, acusadas de executarem a tiros, dois anos antes, a pernambucana Maria de Lourdes Dias Calmon. A vítima era namorada do ex-marido de Edina. O episódio ficou conhecido como o crime das irmãs Poni.

Texto:

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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