Crônicas

O amor nos tempos do Covid

O mal maior

Sofro de um mal incurável e contagioso: o amor pela vida.

E o sono não vem, ou vem lento, quase sonolento. Pro meu gosto, lento demais.

E penso nos vendedores de picolés parados, nos cachorros vira-latas famintos e nos músicos de esquina sem pão e meu coração transborda de paixão e sangue, faz meu rosto corar.

Um ardor por cada vela acesa de lampião, por cada poste piscando em vão.

Sofro por Romeus, por Julietas.

Morrer sem olhar Romeu?

Olhadelas nos asilos, nas cadeiras de rodas: o último suspiro de amor. Aquele que filtra a alma, e será? Dará sentido?

Amo o amor das pessoas nos bancos de praças, mais que as taças nos iates. Embora estes também me pareçam convenientes. Senão, mais confortáveis.

Mas são os tamancos de Almodóvar que pisam mais fundo.

São os acordes de Bethânia que cantam “o apito da fábrica de tecido”.

E “o que será que será, que dá dentro da gente, será que será, que nem dez mandamentos irão explicar, que nem todos unguentos irão evitar?”

Tubos de oxigênios não filtram mais. Podres, pobres covas rasas a macular a terra úmida.

Velórios pomposos via web. Despedidas por vidros.

O último adeus não dado no trem por Dr. Jivago.

E ainda tens dúvida de que engolir vulcões goela abaixo nos queimará o peito?

Cala a boca a resposta. Escorre garganta adentro. O ar que não vem comprimido. Comprimidos que não curam. A cura não cura as perdas.

Só há resiliência e saudade.

Seremos redimidos? Por chibatas e castigos, por cruzes e martírios? A fé tem que sufocar o amor, mas em mim não sufoca.

O amor é o mal maior. Está nos pontos de ônibus, nas esquinas despedaçadas entre cílios postiços e bordoadas. Máscaras finas e usadas. Manchas de batons.

Lá está ele: o amor: tranquilo e infalível como Bruce Lee, ou avassalador como Viniciar, cachaceando uma chaçaça de rolha. Prefiro vinho, s’il vous plait?
E meu cachorro cego me olha e me vê por dentro.

Morrer por amor, por dor, sem odor, sem cor, sem paladar, sem Romeu pra olhar. Morrer por respirar o ar podre e infectado da humanidade.

Que paradoxo: respirar é tóxico.

Mas como encher meus pulmões?

Hoje, somos todos homens e mulheres bomba.

Queria apenas dormir o sono dos justos, como se sempre houvesse amanhã…

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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