Crônicas

Minha relação de amor e ódio com um senhor italiano nas ruas de Belo Horizonte

Quando o conheci, ele já era um senhor de meia idade. Eu, uma menina recém chegada a uma adolescência tardia, camuflada pelo amor e cuidado dos meus pais. Marcamos encontro na Augusto de Lima com Rua da Bahia, o quarteirão mais politizado e resistente de BH. À medida que adentrava aquele mostro, pude sentir seu sebo quente, misturado com tons de cinza e amarelado, como amálgamas em grandes dentes velhos. Lembro de ser tocada por uma matéria invisível, grudenta e altamente engajada, como que um desvirginar da pele de menina de interior.
Não que meus eflúvios fossem menores: fui criada em Ouro Preto, onde as anti-matérias eram até mais antigas e ancestrais que o Malettão.
A sugestão do encontro, partiu da aula de Sociologia no primeiro período de Comunicação Social na Fafich, já no Campus da UFMG. “ – Vocês podem comprar livros novos, xerocar apostilas ou recorrer aos lendários sebos do Edifício Arcângelo Maletta, onde, se tiverem sorte encontram exemplares autografados por grandes com Roberto Drummond ou o Carlos Drummond de Andrade”.
Mas aquele primeiro encontro foi demais para minha cabeça. Tive 9 dias entre o fim das aulas de verão e o vestibular da Federal. Me tranquei num quarto e li, a cada dia, uma matéria nas apostilas do terceiro ano secundário. Devorando um pacote de bala por dia, água e nada mais.
Resultado: passei em sexto lugar em Comunicação Social, que fora o curso mais concorrido daquele vestibular.
Foi então que começou a gincana: fui morar com uma senhora de 69 anos, tia de minha madrinha. Eu com 17. E ela jurava que eu era a netinha que ela não tivera. Cozinhava para mim, fazia quitutes e me levava em encontros na Igreja da Boa Viagem, logo ali na esquina de seu apartamento.

Aliás morar num apartamento pela primeira vez foi também traumático: {a nopite eu abria a janela e via o traçado reto e iluminado, barulhento permeando aquelas pequenas gaiolas, onde vidas escondiam mistérios que eu jamais imaginaria existirem.
Eu era torta, envergada, estrábica, das ruas de Ouro Preto. Morando em casarões centenários e protegida numa redoma familiar de pai, mãe e irmã. De repente, minha constelação familiar virou uma senhora que eu jamais havia visto, com idade para ser minha avó.
Me sentia a Patricinha entre os hippies e a hippie entre os Mauricinhos de outros cursos no bandejão.
Aquele cabelo enorme bem cuidado era alvo de quadrilhas de meninos, que cortavam nossos rabos de cavalo para venderem. Fui roubada na volta da Aliança Francesa e saía da Cultura Inglesa com os dentes Trincados de pavor.
As aulas de dança, que sempre amei, foram para a turma avançada do Grupo Primeiro ato. Mas eu deixei de dançar, depois que era obrigada a sair em hora avançada da academia.
Meus pais foram no meu primeiro dia de aula. Descemos dois quarteirões e entramos no circular amarelo 02. Ninguém cedeu lugar para aquele jovem casal com uma filha, arrumadinha demais para estar se equilibrando entre os ferros de pé.

Papai me olhou e eu entendi: “Seria preciso contratar um motorista para a missão de me levar e voltar da aula”. Mesmo me deixando dois quarteirões antes do prédio da Facul. Logo a lenda da Patricinha “Vou de taxi” se espalhou entre os cabeludos, tocadores de violão e frequentadores esquentados do Diretório Acadêmico. Foi quando resolvi prestar para Engenharia em Ouro Preto e depois cometi a loucura de estudar Comunicação de manhã em BH, Civil à tarde na UFOP e fazer curso de extensão de Teatro à noite em Ouro Preto.
Enfim, deixando tudo isso de lado, sabia que um dia teria que fazer as pazes com o Maletta. Apesar de ter escolhido o Jornalismo como trabalho, ainda faltava me livrar daquele bafo quente do Arcângelo, que me impregnou os poros, como uma infecção.
Mas peraí. Eu também sou Jornalista, amo os escritores, comecei a pisar com tanto orgulho nesta seara que fora a resistência nos anos 70 na Capital Mineira. Queria respirar a Bahia Mineira de Carlos Drummond. Precisava me encontrar e me posicionar c om aquelas origens que eram minhas, que me definem, que são matéria de muito amar. Serei resistência. Serei presente. Chorei tanto cobrindo passeatas de sem teto para a TV. Corri com os camelôs do Centro. Entrei em becos, mazelas, ruelas. Sim. Eu quero o Maletta e tudo o que ele representa.
Então, no último final de semana, quase trinta anos depois, entrei gloriosa no gigante esquerdista do Centro de BH. E fui abraçada por seres fluidos. E me senti limpa e honesta. Foi um encontro feliz de uma menina com uma senhora, cuja essência ocupa com grande orgulho a esquina da Augusto de Lima e Bahia, porque eu sou agora sou Maletta ensebada ou ensaboada. Blima !!! Presente!!! Cintura Fina!!! Presente!!! Conde Bela Morte!!! Presente!!! Carlos Drummond !!!! Presente!!! Roberto…

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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  • Nos anos 70 mais precisamente em 1976 tive meu primeiro contato com o Maleta, mesmo morando em Contagem recém chegado de Resplendor/Santa Rita do Ituêto, um caipira alheio a todos os problemas da República e da cidade grande, o que foi para mim um choque de realidade.
    Mas foi lindo pois a convivência no Maleta com colegas que lá moravam, com salão onde cuidava do meu cabelo grande, e dos bares com longas discussões sobre polirica, cultura e diverso outeos assuntos, me incluiu rapidamente na rotina dessa cidade encantadora cidade que é Belo Horizonte.

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