Magro, esquálido e orgulhoso de suas madeixas brancas e longas, que lhe encobriam metade do rosto, Ferreira Gullar tinha o hábito de jogá-las para traz e abrir um sorriso meio de lado durante as conversas, deixando a mostra os grandes dentes amarelos. Quase um ato teatral, de abrir cortinas, evidenciando os olhos argutos, sob as lentes acomodadas em finas armações. Gesticulava muito, encurvado em sua magreza abissal.
Estive com ele algumas vezes, desde minha adolescência. Era amigo de meu pai, Carlos Bracher, que pintou-o duas vezes. O poeta chegou a passar temporadas no famoso Atelier da Lajes, em Ouro Preto, endereço que também foi morada de Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, Ivan Marquetti, Sérgio Telles, Marcier, entre outros.
Na última estada que passou conosco estava revigorado com a jovialidade da namorada, a poetiza Cláudia Haimssa. Apesar da diferença de idade tinham paixão e afinidade intelectual infinita.
Enquanto ela muito falava, ele a olhava, sorrindo. Gostava de massas e frequentávamos o extinto Piacere, restaurante italiano do também poeta Guilherme Mansur, no bairro do Rosário. Bebericava sucos, mas se deleitava mesmo era com as conversas. Observador atento a cada detalhe.
Sobre a obra de papai, escreveu inúmeros textos, como este, de 1989: “(…) Não há em Bracher esse compromisso de fidelidade à realidade objetiva, com suas relações de volume e espaço, de cor e sensação luminosa. Muito pelo contrário, os motivos que pinta são pretextos para a aventura pictórica (visionária?), para o mergulho num universo indeterminado de formas e luzes, de onde surgirá o quadro, a obra de arte, que é o mundo transfigurado. Bracher aprendeu essa magia. Não tem dela a teoria, não será capaz de aprendê-la analiticamente. Mas sabe-a com as mãos. E a produz, transformando a matéria impenetrável do mundo em pasta colorida e caligrafia poética. Em suma, numa linguagem criada pelo homem e que se chama pintura.”
Também observou sobre o comportamento do amigo pintor: “Inquieto por temperamento, Bracher não usa de cautela e cuidados para realizar seus quadros. Joga-se neles, seguro de seu domínio técnico, num mergulho definitivo, de que pode, ou não, resultar a obra satisfatória. Se não resulta, apaga tudo e começa de novo, com o mesmo ímpeto, movido pela necessidade de colher beleza no momento em que ela, fustigada, emerge à luz”.
Sobre a pintura de minha mãe, Fani Bracher, Ferreira Gullar escreveu, em Catálogo de 1985, na exposição na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro: “Talvez pareça fora de propósito falar de inquietação com referência a uma pintura de cores frias e composição que situa as formas num espaço de eternidade. Em seus quadros, a impressão que se tem é de que o tempo não flui e que cada casa, cada tronco, cada flor, parece recortado do espaço natural e fixado numa dimensão em que nada se deteriora. Mas é exatamente nesta busca do permanente que se revela a inquietação da artista, e que, em que pese as aparências, está presente em seus quadros, nos elementos objetivos e subjetivos que os constituem.De fato essa busca do permanente é também, em Fani, a busca da própria linguagem pictórica, ou seja, ela procura eliminar de seus objetos temáticos o que é circunstancial e particular, a fim de por à mostra o que é permanente e universal.”
A última vez que nos vimos foi justamente na exposição Bracher: Pintura & Permanência, no CCBB do Rio de Janeiro. Lá estava ele, com sua bela Cláudia a escoltá-lo. Relutou em posar para uma foto, mas acabou cedendo (é o clique de Ricardo Correia de Araújo, que ilustra este anexo).
Vivia em seu espaçoso apartamento na Rua Duvivier, em Copacabana, cercado de obras de arte. Costumava devorar livros e jornais durante o dia, e, à noite, se dirigia ao restaurante Trattoria, aberto desde 1976, convenientemente instalado na vizinha rua Fernando Mendes, número 7. Gostava do pão de alho, da berinjela ao vinagrete, e outros belisquetes que rendiam conversa noite adentro.
Esse maranhense, que foi um dos maiores pensadores do século, esteve à vanguarda de seu tempo. Disse que se encontrou com a poesia através de Carlos Drummond de Andrade e escreveu no exílio em Buenos Aires, em 1975, seu cortante Poema Sujo. Um relato inovador, verborrágico de letras que se vomitam entaladas na garganta, como se numa tentativa de se eternizar e mostrar que não passou em vão por este mundo.
Ontem, antes de me deitar, como de costume, procurei em minha prateleira da sala um livro para embalar minha noite. Ali estava, Toda Poesia, de Ferreira Gullar, como um presságio da despedida, se oferecendo a uma admiradora incondicional.
No dia em que faleceu, ainda, na Folha de São Paulo, está publicada sua derradeira crônica, Solidariedade. Em um trecho ele vocifera: “ Para que alguém necessita ter a sua disposição milhões e milhões de dólares? Para jantar à tripa fora?
E se foi, com seu fardão da Academia Brasileira de Letras sobre o corpo de passarinho. Se foi com a mesma visão crítica, língua certeira e os olhos de águia de quem nada escapava.
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