Sabe aquele dia, em que tudo está preparado para ser maravilhoso e perfeito? Aí do nada, você cai num universo paralelo: é o que chamo de falha na Matrix.
Também poderia dizer que sempre que eu e papai saímos juntos algo fora dos padrões tende a acontecer. Isto é normal. Porém, desta última vez, este normal, que é “ser anormal”, foi além dos parâmetros de anormalidade calculada para a dupla Bracher e Blima.
Saímos belíssimos de Ouro Preto, onde moramos, rumo à Academia Mineira de Letras em Belo Horizonte. Era posse da grande escritora Conceição Evaristo.
Aqui neste ponto devo mencionar que ela, além de grande literata é a primeira negra empossada pela AML. E, acreditem, apenas a nona mulher. Isto em 125 anos de criação da mais famosa casa de literatura do Estado, que aliás, teve sua primeira sede em Juiz de Fora, minha terra natal.
Se alguém ainda duvida que o Brasil é um país racista e machista estão aí os números para provar e comprovar.
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Mas não é este o ponto da crônica, ainda que deva dizer que o discurso da escritora, criada na favela do “Pindura Saia”, na capital mineira me levou às lágrimas. Principalmente, o relato poético que, ainda menina, fez dos pingos de água azuis que caíam como contas entre o choro de sua mãe pelo zigue-zague dos varais, onde toda nódoa e mancha da roupa fina das casas ricas de Belo Horizonte eram purificadas pelas mãos da lavadeira.
A cerimônia adentrou a noite e depois de finalizada, fomo todos convidados
a degustar um coquetel com inspiração afro-brasileira no segundo andar do solene edifício.
A tentação era grande, porém nos esperava do lado de fora, o moço de fino trato, Janderson, motorista que nos conduziria de volta, na mesma noite a Ouro Preto. Na ida nos advertiu que teria outra corrida a cumprir no dia seguinte, às 6h30.
Optamos então, por sair à francesa daquele banquete africano e nos contentar com algumas entradinhas rápidas de um restaurante italiano ali perto. Isto aplacaria nossa fome e evitaria que deixássemos Janderson de castigo entre encontros e cumprimentos, já que, como disse, havia muito a ser dito na posse, que demorou 125 anos.
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Pedimos duas bruschetas rápidas. Papai foi de chope e eu de vinho.
Mas é claro que o Bracher não dispensou a sobremesa.
Pediu, como de praxe, a maior do menu.
E foi, literalmente, encoberto por um algodão doce gigantesco, pensando eu, por alguns segundos, estar conversando com uma enorme massa de açúcar em forma triangular.
Meia hora e estávamos de volta na estrada.
Aquele trajeto que nós conhecemos de olhos fechados. Cada curva, cada aclive, cada declive e quebra-mola. Nosso corpo se molda numa viagem sempre tranquila e o bom soninho da volta nos aguardava. Papai na frente com a cadeira declinada e eu atrás, escarrapachada com minha Louis Vuitton ( ou não) feita em travesseiro.
Até que…!!!???
Acordamos numa floresta ancestral africana.
Não???
Sim…
Ou quase isto.
O moço se descuidou num atalho da estrada que está meio retalhada e caiu numa clareia em meio a uma floresta na altura de Itabirito.
Eu acordei e me vi sendo sugada por palmeiras e árvores gigantes, como grandes mãos que chacoalhavam o carro.
_ Pai, onde estamos?
E o olhar dele de pavor me fulminou como uma navalha gigante.
_ Janderson?
_ Não sei o que foi “Seu” Carlinhos. Segui uma placa que indicava para cá.
Ah, então tava fácil. Meia-noite, seguimos em direção à cidade de Itabirito e cairemos na estrada.
O Google Earth dava sinal cinza, com um cactus chorando.
Papai fazendo cálculos de onde estaria o Norte o sul, o leste e o oeste e o Janderson com os olhinhos entreabertos, dando piscadas de um sono vindouro.
Me imaginei comida por feras.
Assaltada por bandoleiros.
Naquela hora, o vinho subira à mente, e tudo seria possível.
A sorte é que papai se mantem calmo em qualquer situação. Conta minha mãe, que num terremoto em Lisboa ele se recusou a deixar o prédio por queria “dormir mais um pouco, Faninha”.
O Janderson implorava: _ Preciso trabalhar amanhã, vamos dormir meia hora.
Mas papai sentiu o perigo e jurou se virar em bússola.
Foi quando bateu uma maresia de madeira queimada. Um cheiro forte, de fogo adormecido.
_ O que é isto, Janderson?
_ Dizem que aqui em Itabirito tem um carvoeiro clandestino.
Meu Deus, que destino, pensei eu.
Foi quando outro carro se aproximou. Dele saltou um homem.
Que podia ser um bandido, um assassino, um maluco, ou coisa e tal.
Mas era outro perdido.
_ Os senhores sabem me dizer como saio daqui?
O medo se transformou em desesperança. Estávamos mesmo fadados a passar a noite naquele breu, sem sinal de celular ou civilização.
Foi quando o gênio da matemática baixou em papai. Sim, além de pintor, escultor e escritor é técnico em pontes e estradas.
Foi num fazer e desfazer de traçados com os braços compridos, falando cálculos desconexos em voz alta, até que gritou: _ Ali. Segue por ali, Janderson.
O rapaz acordou do transe em que se encontrava e seguiu.
Batata.
Voltamos pra estrada.
Gênio, não é gênio a toa.
E às 4h30 adentrei meu quarto.
Ricardo, p*.
Achando que, àquelas alturas, já teria rompido os votos do casamento em algum motel de beira de estrada.
Blima Bracher é jornalista e escritora. Vencedora do Prêmio Sesc de Literatura Crônicas Rubem Braga e uma das dez finalista do Prêmio Jabuti categoria Crônicas 2023.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.