Crônicas

Carlos e Fani Bracher: 50 anos de amor e arte

Crônica por Blima Bracher

Fani

Pra falar sobre a união de meus pais, preciso voltar no tempo. Ela, Fani Maria de Castro Gomes, a mais velha de uma família tradicional de Piau, Zona da Mata mineira. Filha de Vasco Gomes, que veio de Portugal ainda no ventre da bivó Avelina, nascido em Minas. Foi criado por um padrinho, pois que nem chegou a conhecer seu pai de sangue.

Vasco Gomes

Vasco Gomes, pai de Fani

Vasco era o caçula de três irmãos: Margarida, a mais velha que diziam lembrava um pouco a atriz Ava Gardner, com suas pestanas grossas, olhos cor de azeitona e semblante redondo. Toninho o do meio.
Pois bem, a proximidade do Rio fez com que Margarida arrumasse “bom partido” lá, como se dizia à época em terras cariocas. Vasco também se muda para o Rio, e, naquela época, galã, muito jovem, chapéu tombado, bigodinho fino e silhueta esguia, frequentava o Clube dos Democratas, a Estudantina e fazia boa figura quando o centro do Rio fervilhava em saias e rodopios, salões, fumaça, sinuca (algumas de bico), e flertes debaixo de cabelos, cuidadosamente, enrolados em bigudins.
Boquinhas assanhadas usavam carmin e pó de arroz. A alegria corria solta, traçando os primeiros esquadros de uma brasilidade faceira, com olhos revirados em Carmem Miranda, jongos e rodas, cassinos, vedetes, sapatos bem lustosos e ternos vincados. A moda entre os rapazes era dobrar a camisa e deixa-la na altura dos muques, firmes em elásticos escuros. Os casados adotavam suspensórios e cabelos engomados, milimetricamente, atrás das orelhas. Convidar uma dama casada ao salão não era ofensa, mas sinal de que o bom gosto do marido se fazia valer, ao que era de bom tom recusar-se ruborescida.
Inteligente e malandro, Vasco já passava dos 18 e era hora de tomar rumo. Foi o padrinho Odilon Braga (Ministro da Agricultura de Getúlio Vargas) que o recomendou à antiga Fazenda Experimental do Café em Coronel Pacheco (atual Embrapa), onde o jovem mancebo faria valer de suas boas notas estreladas destacando-se como grande botânico e entomologista. Descobriu espécies novas, uma família de plantas, as Gomezianas ( hoje catalogadas no Jardim Botânico do Rio) e tinha o dom natural e o amor pela natureza. Boa cepa de trabalhador português.


Marina de Castro

Marina, mãe de Fani

Passemos a Marina de Castro, minha avó materna. Essa foi criada como boneca. A caçula de um rico fazendeiro do café: Seu Lelé, como era chamado. Bivô Marcelino era de paz e se comprazia com os netos a sua volta loucos por um naco de caramelo. Dizem que foi o primeiro da região de Piau, que abrangia desde Coronel Pacheco até as bandas de Santos Dumont, a ter um automóvel.

Marininha, sua caçula, era o xodó: pequena, coluna sempre arqueada, cachos negros, boquinha fina e pernas grossas. Formou-se no magistério de Rio Novo. Era avançadíssima: jogava vôlei, futebol, soltava confetes e serpentinas e morria de medo dos casos de fantasma na Fazenda São Clemente, mesmo tendo a companhia de Anacleta e Diocleciana ao quarto, onde podia apanhar jabuticabas e sapotis pela janela.Andava a cavalo e copiava nas modistas os mais lindos e elegantes vestidos das revistas. Tinha chapéus a la Scarlett O’hara e casa no centro da cidade para assistir as missas aos domingos. Cores sóbrias, cortes secos e um bom gosto natural sempre a acompanharam. Dizia: se você não nasceu alta ou com algum privilégio extremo de beleza, compense com sua graça, andar elegante, boa postura e faceirice. E assim, a morena pequenina esbanjava charme por onde passava.Foi quando por ela, desapercebido passou o botânico Vasco Gomes.Piau e Coronel Pacheco ficam há 7 km de distância e quis o destino que a filha caçula do Coronel Marcelino se apaixonasse logo pelo “Barnebé” da Fazenda experimental. Na época, trabalhar como funcionário público era mal visto pelas famílias ricas. Mas Marina deu as mãos em praça pública para Vasco e aí, já era: foi marcado o noivado.Da união feliz nasceram 4 filhos: Fani, Vasquinho, Wagner e Rose. Viveram anos lindos na Fazenda Experimental do Café. Vovó a enrolar doces de marmelo no varal. O cavalo Montenegro, o papagaio falante, o cachorro Rex e as traquinices dos filhos. Vasquinho ficou preso numa engenhoca elétrica que inventou pra passar filmes. Waquinho congelou o peito de tanto chupar picolés. E Rose ficava quieta no Moisés, muitas vezes em cima da mesa de um animado baile. Até cair da lambreta Marina caiu. Mas Vasco voltou pra buscar sua morena faceira.
Fani faria 9 anos e era hora de partir, pois já se graduara no primeiro grau. A menina devia estudar, e, por mais que fosse custoso, vovô a colocou no trem rumo a Juiz de Fora. Foi para o Colégio interno, onde passou por maus bocados. Passarinho criado solto, agora preso, com horários rígidos e regras das freiras. No Santa Catarina cumpriu seus estudos. Vovô pagava lanche extra. Sozinha, ela atravessava corredores escuros para tomar seu leite com bolo antes de se recolher.


Os Bracher

Waldemar e Hermengarda Bracher com os filhos Nívea, Paulo, Celina, Décio e o caçula Carlinhos


Eram idos dos anos 60 e a juventude se exaltava em Juiz de Fora. Carlinhos Bracher, era o caçula de uma família de cinco filhos: Décio Daniel, Celina Henriqueta, Paulo Eduardo, Nívea Rosa e ele, que é Carlos Bernardo.
Vovó Hermengarda veio de Diamantina de uma família amiga da de Juscelino Kubstichek. Viúva, como a mãe de JK se afeiçoou à vizinha que tinha filhos em idades próximas e passavam por dificuldades parecidas..


Waldemar Bracher

Dr. Waldemar Bracher, pai de Carlos Bracher

Waldemar era descendente de suíços alemães. Uma escadinha de Roüsnner Bracher, que ficavam aos cuidados do mais velho, Oscar, quando bivô Frederico e bivó Amanda saíam. Aí a bagunça corria solta, mas quando os pais voltavam, Frederico perguntava “_ Oscar, os crianças se comportaram?” Ao que Oscar respondia: “_ Sim papai, como anjos”.
Em tempos exíguos, vovô Waldemar, a quem chamávamos de Brachão, casou-se com vovó Hermengarda apenas com o curso primário. Trabalhador, arguto e com filhos pra alimentar, graduou-se em Química e Engenharia. Tornou-se figura notória em todo o Brasil, dando palestras pioneiras sobre Metafísica. Seus conceitos avançados para a época magnetizavam a todos e recebeu a alcunha de “Doutor Bracher”. Pois bem, viajava o Brasil inteiro para disseminar seu conhecimento a convite de grandes universidades. Descobriu na tabela periódica o que seria o elemento zero.Foi pioneiro no combustível orgânico e biodegradável.No primeiro dia de aula, contam os alunos: tomava veneno e em seguida o antídoto para explicar na prática o que era química.


O Castelinho

Castelinho dos Bracher, em Juiz de Fora

A família Bracher ficou famosa em Juiz de Fora por mudar-se para o Castelinho de tijolos na Rua Antônio Dias Tostes 300. Para lá, recorriam todos: malditos proscritos, visitantes que iam ficando e formavam uma grande comunidade de amor, liberdade e paz. Ali passaram alguns dos maiores intelectuais do país: Affonso Rommano de Sant’Anna, Fernando Gabeira, Leda Nagle, Olívio Tavares de Araújo, Sueli Costa, Raquel Jardim, Frederico Morais, Gilberto Chateaubriand, Paulo Autran, Clementina de Jesus e tantos outros.

Também poetas marginalizados da sociedade e inadequados aos adjetivos politicamente (ou chatamente) corretos, que costumam rotular aqueles que prestam e os que não prestam aos olhos dos tolos.Me vieram à cabeça memórias de tempos que não vivi, daquela efervescência cultural, todos trabalhando juntos, dando opinião no trabalho uns dos outros.E enxerguei meu pai pintando a pomba da cozinha.E vi minha tia Nívea incansável orientando cada centímetro dos traçados dos desenhos internos da casa e do jardim. Milimetricamente, cada cor, cada tonalidade, com seu olhar absoluto para as artes. Olhar de quem conhecia profundamente de leituras e debates noite adentro. E de um talento que eu queria ter herdado.E tinha as festas do Sai Azar. E A Semana Santa Profana, da qual participei, com um cortejo com todos fantasiados do pátio interno ao da frente da casa.Voltando a um passado menos remoto no Castelinho dos Bracher, me lembrei das noites que dormia no quarto verde e era acordada com o cheiro do cigarro que meu tio fumava escondido no banheiro de baixo. E descia para a cozinha e passávamos a madrugada conversando sobre o sexo dos anjos, sobre o sentido da vida ou, simplesmente, sobre os quitutes da Nicinha.

Aliás, pra mim, as pimentas daquela cozinha serão sempre dela e da Laurinha. Pimentas de macaco. Aqueles pastéis de queijo ou carne ardidos. O picadinho da Nicinha era a única coisa que meu tio comia na semana que antecedeu seu passamento.E Dona Elza a balangar os peitos como fazia na escola de samba. E o Bombom roubando cachaça na cozinha. E a nossa própria Globeleza, a Vãnia, de arquinho e rabinho de gatinha no Carnaval. E tio Décio murmurando sobre a Amíriam, que por sua vez batia na mesa e saia furiosa. Pra nós, Ami, sempre preparou ótimas saladas.E as gargalhadas roncadas de Laurinha.E as visitas do Cassimiro, ao som de três campainhas, sempre esperadas aos domingos.E os primos de Juiz de Fora e do Rio, que se sentavam ao redor da mesa em rodadas de pizza (isso no tempo das vacas gordas), ou das pipocas, mais modestas, coitadinhas.E no corredor ainda ecoa a voz de Waldemar, o vovô Brachão. O vulto grande, a chegar de tarde. Com voz grossa e doçura infinita. E ele ao piano, tocando sua composição “Inocência” dedicada à Lidinha, sua primeira sobrinha. E trazendo biscoitos de mel ou leitoas assadas nos natais.Nestas ocasiões, sempre catávamos “Adeste Fidelis” que tio Décio elevava às alturas. E os teatros de Cecília. E Larissa montada nas costas do Bulunga. Tinha Poló, Lucas, Anna Magdalena, Loló e os Gomes. E os perfumes de tia Shirley. E os tangos de Bebel. E as rosas vermelhas de Max.E os chás de Hermengarda, nas canecas multicores com gostinho de funcho da horta ao lado. Onde também havia cenouras, que arrancávamos e comíamos sujas de terra.E as histórias do Peri, um cachorrinho preto que teve morto e ressuscitou. E as caças ao tesouro de tia Nívea.E tinha o jipe amarelo de Daniel, que ficava no porão. O abacateiro foi Paulinho quem plantou E ele mesmo andava preocupado com as raízes que abalavam a estrutura da casa.Esse tio, sempre chega manso, silencioso, com um guarda chuva debaixo do braço, vindo de algum acontecimento social da cidade ou do coral Pró-música. Sempre uma surpresa alegre, para as conversas na cozinha.No escritório, gostava de assistir ao Big Brother com tio Décio, que comentava das mais ou menos boazudas.Da janela do quarto verde, adorava escutar os ensaios de Carnaval fervendo na quadra do Sport.E ver as luzes desfocadas dos faróis da Getúlio Vargas por traz das folhas do abacateiro.E sentir o arrepio dos retratos me olhando no andar de cima. E um frio na espinha em alguns lugares da casa. Será bem assobrado o corredor?Fiquei pensando, onde ficou tudo isso?Pelo menos, as lembranças de infância, essas ficarão no meu coração.E ainda existem as luzes da Getúlio Vargas brilhando atrás do abacateiro. E o som dos ensaios do Carnaval, que pretendo escutar até o dia em que eu morrer também.Pois bem, voltando aos idos dos anos 1960, Fani, que estudava Jornalismo na UFJF tornou-se muito amiga de Celina Bracher, irmã de papai.Passou a frequentar o Castelinho.Logo deu match entre ela e papai e os dois começaram a namorar.
Celina BracherÉ preciso dizer de uma ruptura muito grande ocorrida na época: minha tia Celina veio a falecer de uma doença, a porfiria, para a qual não existiam recursos na época. Tomo aqui a liberdade de publicar depoimento de Pulika, seu melhor amigo.“Entre todas as pessoas que conheci em meus 75 anos, Celina foi a que viveu mais intensamente a plenitude do amor, que esbanjava para todas as pessoas. Um amor divinal, uma plena alegria de viver, estruturada sobre uma paz profunda, mesmo nas dificuldades. Parece que Deus entrou ali, gostou e sentou praça…Por que a chamou tão cedo? Teria gostado tanto assim???No dia do enterro, Dr. Bracher me abraçou e me disse, entre copiosas lágrimas: ‘Essa é uma flor que não foi colhida, como pode ser assim??!Achei muito triste esse juízo paterno.Depois pensei que se a lua fosse colhida pelo sol, feliz sol!…Entretanto, todos nós jamais teríamos a lua e todo o encantamento que ela nos proporciona.´”
Bem, depois todos se mobilizaram em torno da Galeria Celina, considerado o pioneiro Centro Cultural multiartes do Brasil.
Mas isso é assunto para outra crônica…


Bodas de Ouro

Casamento Civil
Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, que deu a Bracher dois anos de estudos na Europa

Então voltemos às Bodas de Carlinhos e Fani. De início, vovô Vasco achou estranho aquele cabeludo que apareceu na sua rua. Sandálias Franciscanas, calças largas. Como levaria ele sua bela Fani, jornalista, disputada?
Mas Carlinhos era um belo modelo também. Alto, esguio, sonhador, cabelos dourados a espalhar ideias ao vento. Na Europa recebeu convite para modelar para Armani.
Então casaram-se e foram para a Europa onde moraram por dois anos entre Paris e Monssaraz. O período foi resultado do Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, o maior concedido no Brasil pela Salão Nacional de Belas Artes do Rio e no qual, o jovem Carlinhos ganhou primeiro lugar.
Na Europa, mergulharam no amor e na arte.
Fani, com seu talento e inteligência logo se embrenhou pelas artes. Não poderia fugir ao dom divino de transformar em beleza tudo que toca.De início, as paisagens rurais. Depois os pedregulhos com setas, como se tentando se orientar por ter sido arrancada da Zona rural e trazida para o pó do Quadrilátero Ferrífero.BMas vê-los juntos, nestes mais de 50 anos, pois que os de namoro contam, é como presenciar um balé.Ele é cabeludo de sandálias Franciscanas e calças largas. Ela uma dama sóbria e observadora.Podem ter suas divergências, mas quem não as tem?Mas observá-los falando de arte e comentando suas obras é como presenciar um pas de deux de balé, onde cada músculo, cada nervo, cada respiração estão em sincronia. A comunhão deles na arte. Algo raro e único. Comovente, como presenciar a sinfonia perfeita, o côncavo e o convexo. Mentes brilhantes da cultura.E o mais interessante: cada um com seu estilo. Dois gênios que o dom divino teve o capricho de juntar.

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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