Crônicas

Cana na Bahia, Ouro em Minas

A riqueza da cana espalhou melado pelas ruas de Salvador. O Bahia é açucarada, o baiano doce. Lábia de mel. Envolventes e grudentos como calda quente.

Não sei se é legal ser negão no Senegal, mas na Bahia o orgulho black é massa. Lindos crioulos desfilam sua baianidade nagô com contas coloridas nos cabelos e sorriso branco nos dentes.

Descem as ladeiras do Pelô tocando tambores. O ritmo acorda cada célula do corpo.

Sobe aquele arrepio na alma, que por alguns instantes justifica qualquer vazio de existência.

Vivemos para ouvir este batuque e isso vale a vida.

Como presenciar uma cena linda, um instante de um filme, uma foto, um olhar, um perfume. Arrepio gelado nas costas. Átomos corpóreos vibrando juntos. Choro compulsivo de alegria.

Fucei cantinhos sujos e queridos pelas ruas do Pelô: botequins enfeitados com samambaias, balcões protegidos por santos e orixás, garrafadas que prometem de um tudo.

Placas indicando salões de penteados afros. Letreiros apagados pelo tempo. Casas despedaçadas, mas ainda assim vibrando em cores. Amarelos, rosas, azuis e verdes, tons de pocilgas dos textos de Jorge Amado.

Senti o perfume de Dona Flor.

Descobri que sou filha de Oxum com Iansã. Amarela e vermelha na alma.

Dancei na missa afro do Rosário dos Pretos.

E queimei a língua com a pimenta de Dadá.

Provei o acarajé de Cira. E os bolinhos de estudante de Dinha. Também chamados de punhetinha entre os meninos.

Passei uma tarde em Itapoã, na companhia de Gessy Gesse, “Iansã da minha vida”, como dizia o poeta. E porque não dizer, em companhia de Vinícius? Toquei sua guia branca de Oxalá, ainda pendurada na parede.

Resgatei uma dívida comigo mesma, desde criança. Prometi que voltaria para decifrar aquela espiritualidade mestiça e voltei pra receber as bênçãos do Senhor do Bonfim.

Baianos são alegres e solares como o açoite do corte da cana. A dança do Olodum com tambores levantados lembrou-me tempos imemoriais de colheita nas lavouras escravas.

Volto pra Minas e sinto o contraste dos frutos desta escravidão. Mineiros são contidos, escondidos em minas escuras, nos recônditos cantos da alma.

Meandros esburacados e tesouros escondidos. Sorrisos de lado e muita reza pra calar a boca.

Cresci ouvindo que “quem fala muito dá bom dia a cavalo.” Sinônimo de “não conte onde achamos outro veio de ouro.” E me lembrei dos baianos falando pelos cotovelos com cavalos, cachorros e espelhos.

A alma mineira e sussurrenta das procissões contrasta com o profano das festas carnavalescas. Breves momentos despudorados escondidos atrás de máscaras e fantasias. Êxtase liberto em pequenas porções anuais.

E seguimos rezando terços e murmurando rosários.

Despudoradamente tristes e contidamente alegres. Nem por isso menos lindos. Mais profundos e tortuosos, com certeza.

Dois mineiros juntos conspiram. Mineiros rezam em suas festas.

Já dois baianos juntos, com um tambor, fazem a festa.

Blima Bracher 2015

Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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  • Simplesmente fantástico a observação, baiano, povo maravilhoso, cultura maravilhosa, estado da nação onde se extrai com competência todo o significado da vida. Parabéns aos baianos, parabéns aos mineiros, só para elogiar um atributo, culinária rica, diversificada e altamente conquistadora.

  • Simplesmente fantástico a observação, baiano, povo maravilhoso, cultura maravilhosa, estado da nação onde se extrai com competência todo o significado da vida. Parabéns aos baianos, parabéns aos mineiros, só para elogiar um atributo, culinária rica, diversificada e altamente conquistadora.

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