Por Mauro Werkema
A arte tem muitos enigmas. Eles são seu fascínio e seu mistério. Menos ou mais enigmas surgem das diferenças da percepção/fruição por parte do espectador. Observar, no sentido de ver, nem sempre permite envolver-se, sentir. Mas, se há talento, refletido na obra, expresso numa espécie de qualidade/atributo, nem sempre de fácil identificação e definição, este é que vai qualificar o olhar e permitir que passe do simples enxergar para o sentir. Eis que o talento surge, então, entre todos os enigmas, como característica nem sempre facilmente percebível, embora real, mas quase indecifrável porque está na ordem do pessoal, das sensações próprias de cada um. A natureza deste fenômeno, as condições de sua manifestação, o alcance de sua expressão, o seu trânsito entre a razão e a emoção, a impossibilidade de medição, ou da decodificação identitária e pessoal, entre vários outras características e condicionantes, desafiam os que se dedicam a estudar o fenômeno da criação artística. É questão antiga, mas de remissão obrigatória em qualquer reflexão sobre o tema.
Dom inato, até que ponto pode ser aprendido ou aperfeiçoado (é possível o ensino da arte?), estado alterado de consciência, percepção extra-sensorial ou exacerbação de uma sensibilidade, exteriorização do inconsciente, pela quebra da couraça armada pela introjeção das normas sociais de conduta impostas ao homem civilizado ou universalizado, capacidade de percepção diferenciada, tudo isto são conceitos ou tentativas de entendimento que diferentes escolas de pensamento vão elaborando sobre o grande enigma da arte.
O fato é que o talento é um bem precioso, e não só para a criação artística. Revalorizado, entronizado como diferencial para a obra de arte, o talento vive um novo tempo, mais exigente, em que a ampliação da informação exacerba as condições de crítica, cada vez mais questionadoras da obra de arte sem arte, do objeto aleatório, das performances e intervenções, da arte conceitual e outros vanguardismos. Reivindica-se o retorno à arte como pregam artigos recentes de Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna. Romano, em texto recente, lembra fala do maestro Lorin Maazel, que diz que o grande problema que “vitimou grande parte da arte moderna, é que deixou de ser arte para ser conceito. Conceitos que, ao serem demolidos, não deixam nenhuma arte atrás de si”.
Pode-se compreender a arte conceitual, ou a criação/exibição de algum objeto como expondo algum pensamento/conceito, com conteúdo ideológico ou criação de forma. Ou pode-se entender o meramente ornamental. Mas a arte vai além. Já Ferreira Gullar, mais contundente, no seu “A expressividade da forma”, de 1993, diz que “se qualquer forma traçada sobre uma tela expressa alguma coisa, não importa mais nem o talento nem o conhecimento técnico; todo mundo é artista e ninguém o é. Se toda forma é expressão e se a arte, livre de qualquer princípio ou definição, não é mais do que forma expressiva, então não se pode mais distinguir entre uma obra de arte e outra coisa qualquer, outro objeto qualquer”. Há que se retornar, portanto, à arte, talvez a arte que demonstre virtuose e criatividade, permanência, inovação.
Estas são questões inerentes a uma conversa com Carlos Bracher e sua vivência, o homem e o artista, vida e obra. Para ele, como primeira condição para se compreender a ocorrência da arte-talento, este visto como condição realizadora, está a indissolubilidade entre o artista e o homem, que julga muito clara em sua trajetória de vida e pintura. Sua arte é o seu sentimento e esta vem da sua experiência no mundo. É por aí que pode ver o quanto o talento é atributo do que poderíamos chamar de “humano profundo”. A sua visão do mundo, do homem e da sociedade, vida e morte, as relações nas ordens política e econômica, condicionam seu “encantamento”. Não compreende o artista frio, indiferente. Não vê a arte como resultante de um eterno sofrimento. A emoção, triste ou alegre, se dá pela condição vivencial, pelo envolvimento espiritual, pela capacidade de ver e envolver, de perceber as coisas do mundo. O perigo maior é o empobrecimento da sensibilidade e do humanismo, o embrutecimento, a descrença.
Olívio Tavares de Araújo, prefaciando livro sobre Bracher, diz: “Meu primeiro conceito é a convicção de que talento existe – por mais difícil que seja defini-lo – e é uma coisa com a qual se nasce ou não”. E conclui: “Não estou reduzindo o artista a um fenômeno genético. Se fosse só assim, não haveria como compreender, racionalmente, certas concentrações ou momentos de esplendor, dos quais o exemplo mais evidente é o classicismo vienense na música do Século XVIII. Num intervalo de 65 anos, nascem quatro dos maiores gênios da música: Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert”. Herdado, aprendizado, estimulado pelo entorno que propicia o “insight”, o talento é tudo isto. É possível tentar encontrá-lo para qualificar a obra de arte?
Uma segunda ordem de pensamento encontra-se no que Bracher chama de “liberalismo original”, herança de sua formação familiar e essencial no seu modo de ver o mundo. Não é o liberalismo paternalista ou apenas generoso, que força a aceitação do contraditório por mera educação intelectual, mas algo de raiz, genuino, autêntico, efetivamente exercido na sua plenitude. Sem esta condição não há sensibilidade plena, condição difícil, quase inalcansável, neste mundo desigual e estimulador do raciocínio discriminatório. Neste campo, é possível falar numa nova sensibilidade, a que surge com a “desconstrução” que se opera em tudo. Desfazer-se de amarras, despojar-se de preconceitos e modos clássicos de pensar, abrir-se para o novo, tornar-se espírito liberto, deixar que a paixão se torne a libertação do que oprime.
Aos que o conhecem, estes traços se tornam perceptíveis. E que se revelam, em Bracher, no seu ato de pintar. Vê-lo é uma emoção. “Equivale a observar um médium incorporando espíritos: com movimentos circulares que esboçam quase-formas moduladas em sentido horário”, diz João Adolfo Hansen, em insuperável exegese da obra de Bracher. Em movimentos rápidos, resultantes de uma articulação miocinestésica, que comanda o braço energizado, sob estímulos de um cérebro movido a impulsos, tudo isto fazendo com que vá “irrompendo finalmente na tela, como uma aparição escapada da ponta de dedos onde um corpo imaginário se concentra”. Revela-se, com concretude didática, o que é o talento. Pode-se perceber, a cada gesto, o admirável dom artístico. Sucedem-se as pinceladas, às vezes substituídas pela espátula e a própria bisnaga da tinta, em gestos aparentemente aleatórios e informais. Mas que, gradativamente, para encanto do observador, vão dando forma e vida, numa mágica combinação de cores. Hansen vai além: “Em vários documentários, aliás, é costume referir-se à profundidade meio misteriosa e incondicionada da experiência existencial do pintor, restituindo-se a disposta unidade de sua psicologia como princípio causal e explicativo para o dinamismo de suas telas”. Conhecida e ressalvada a imensa, antiga e complexa discussão que a questão envolve, em Bracher, para Hansen, no entanto, não há dúvida de que “as intensidades de suas telas são vestígios de descargas pulsionais”. E, avança: “Se falasse, aqui a pintura diria o “não tenho palavras”, do mito romântico do indizível”.
O artista Bracher, com seu método e estilo, começa acariciando a tela, seu espaço de trabalho, emociona-se, acelera a respiração, se entrega ao pulsional, empunha o creón e retrata sua “impressão primeira” do objeto, ataca com a trincha e espátula e dá-se o mistério do talento. Vai se revelando uma forma, em tempo curto, no jogo de movimentos, com cores e luzes, originados de pinceladas fortes, enérgicas, com relevos e extensões. O gesto é brusco, não estudado, ou medido e refletido, a busca da tinta é quase aleatória nos sucessivos e rápidos golpes em que ataca a tela, mas tudo vai compondo imagens, com as visões e deformações que, afinal, vão compor a obra. Moacir Laterza, que debruçou-se na interpretação de Bracher, diz que “caucionada por uma singular vivência estética, a práxis artística de Bracher manifesta essa estranha dialética interna da verdade do ser”. E mais: “É esta mediação da intimidade pessoal que determina a qualidade da sua obra. Procurando desvendar o enigma do mundo, Bracher resgata de certo modo sua realidade circundante e, a um só tempo, encontra a pista para a decifração do enigma do seu próprio eu”.
Para Bracher, falando do seu processo, “pintar é um processo anímico, é uma detonação”. E mais: “É preciso misturar poesia e alucinação, com a expressão, possível, da força criativa, do talento, que já nasce com as limitações da personalidade. O quanto esta limitação vai preponderar é que dará a técnica e o estilo. O que nos leva a indagar até que ponto a transgressão absoluta não é construtiva”. Bracher se diz “expressionista essencialmente, composto por uma estética tensa, dramática, sempre uma transferência das interioridades. Mas o motivo, o élan, o impulso profundo é sempre decorrente de algum envolvimento psicológico, visto como estímulo a uma reação. A profusão de cores e formas é uma convulsão, uma eclosão imprevisível, condicionada pela emoção de cada instante.”
“Não é cerebral nem intelectual. Fica no intuitivo. É como uma reação diante da vida. O fluxo de paixão é que vai produzindo gestos e imagens, que vão surgindo na tela. Não se pensa nem na cor, que vai compondo o conjunto, ajudando na vida e na forma, escolhida sob o impacto da emoção”, completa Bracher sobre o seu processo criativo. Esta fala nos remete ao pensamento de que, em Bracher, o instinto é o seu talento. E também aí reside o seu enigma. A força e o sentido do gesto, que se realiza na articulação entre o músculo e o movimento, impulsionado emocionalmente, instintivamente dirigido, compõem uma misteriosa concatenação criativa.
“É da essência da linguagem verbal ser simbólica. A essência da linguagem visual não é a mesma; uma pintura não dispensa conceitos, mas também não sobrevive deles. Fala direto à percepção, que é biologicamente uma relação entre a sensibilidade (sistema límbico) e o intelecto (córtex)”, diz Daniel Piza em comentário crítico ao artigo “Argumentação contra a morte da arte”, de Ferreira Gullar. E avança: quando a imagem chega à retina, aciona reação neural e química cerebral. E afirma: ”Disso se conclui, por exemplo, que como o olho possui estrutura harmônica, não é a toa que temos um senso harmônico, um gosto pela harmonia”. A presença desta “harmonia”- vista como relações simétricas e a opção pela linha reta ou com a exatidão entre o real e o retratado – com o classicismo e o impressionismo, têm sido motivo de grande discussão na teoria da arte. De toda esta questão, Merleau-Ponty nos dá leituras profundas na sua obra sobre a relação entre o vidente e o visível, em especial em “O olho e o espírito” e “O visível e o invisível”.
Em Bracher, a arte é um grande “exercício humano e espiritual”. Demonstra a beleza e o mistério do espírito humano, em que “a sensibilidade, como capacidade de perceber e emocionar-se”, é condição fundamental: “É o ato inaugural”, diz Bracher. “Pode ser aprimorado pela cultura”, diz, mas com a advertência de que o processo educacional nunca poderá ser autoritário ou limitativo das eclosões instintivas. Na boa escola de arte, o aluno deve suplantar o professor, indo além dos processos de padronização e universalização, ou de implantar um conhecimento único, características inerentes ao que se chama educar. “Os eixos culturais são nossos signos condicionantes. Mas que precisam ser detonados para se conseguir canais de expressão. É algo que tem a ver com a afirmativa de que cante sua província e serás universal, se mantida a sua singularidade ou matricidade”.
O artista será sempre um ser em perplexidade: “Tem uma dor permanente decorrente de não ser o que gostaria de ser. Vive momentos de tristeza e alegria, ambos sendo condição para a arte”. Mas não será possível irromper o processo criativo sem “a desconstrução, palavra-chave do nosso mundo em transformação, que só se realiza a partir de um “inconformismo”, gerador de energia interna, que se exterioriza em impulsos criativos”. É algo como desprender-se do padronizado, do comum, propiciando a paixão explosiva.
Com uma nova trajetória artística, Carlos Bracher trabalha intensamente. Escreveu um “roteiro da sensibilidade” sobre Ouro Preto, com pinturas em guache expressando sua visão sobre a velha cidade. Completou a Série Brasília e publicou livro com texto e pinturas exaltando a cidade de Juscelino, Niemeyer e Lúcio Costa. Realizou exposições, nos últimos três meses, no Museu da República, em Brasília, na Abadia de Meumunster, em Luxemburgo, no Palácio dos Governadores, em Burges, na Bélgica, na Galeria da Embaixada Brasileira, em Buxelas, e prepara mostras em Frankfurt, Zurik, Oslo e Praga.
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