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São Francisco de Assis na obra de Carlos Bracher

Adepto da filosofia de “Paz e bem” pregada por São Francisco de Assis, Carlos Bracher acredita que o Santo foi o que mais compreendeu os passos de Cristo na terra. Em sua obra, referências a São Francisco de Assis são constantes, como poderemos ver. Fiquemos agora com um trecho em que Bracher descreve a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. “Na São Francisco, mestre Aleijadinho excedeu-se. Torceu a pedra, abriu arcadas, rompeu paredes, afrontou até mesmo a física, concebendo o templo de maior inventividade do Brasil. Estamos diante, simplesmente, da obra-prima do Barroco mundial, segundo Germain Bazin.

No auge de sua criatividade, Aleijadinho mostrou, aqui, seu total talento. Não estava ainda doente quando a projetou (1764), tendo apenas 26 ou 34 anos, dependendo do nascimento.

Como Baudelaire, aleijadinho sabia que “arte é espanto”. Não mais igrejas retas, sisudas e frias, para isso não servia. Via longe e sabia que arte é fantasia, sabor, espécie, magia. O caminho mais curto entre dois pontos, para ele, não era a pobre reta: era a curva. E nela apostou, nos cheios e vazios, não no árido e lógico quadrado, mas nos círculos, nas vestes rebeldes e espirais curvilíneas da concha.

Nesta Igreja, desloca a fachada das torres, avançando-a fortemente para receber o espectador, propondo-lhe surpreendente dinamização do seu olhar, que se verá dramatizado ao adentrar o templo, que o acolhe na teatralidade.

O óculo sobre a porta de entrada, geralmente vazado, seguindo secular tradição arquitetônica, aleijadinho o fecha sumariamente, colocando aí seu São Francisco em pedra-sabão, a receber de joelhos as cinco chagas no Monte Alverne.

Nas paredes laterais, faz exatamente o contrário: em todos os templos, daqui e alhures, são fechados, com mínimas janelas superiores. Aleijadinho, não. Não quis saber de reles janelas – mas rasgadas arcadas para o sol entrar, até mesmo as águas e as chuvas, privilegiando o mirante triunfal a descortinar-se a partir daí, a paisagem amplificada de montanhas e céus, a ladeira de Santa Efigênia ao longe e sua tão amada Igreja de Nossa Senhora da Conceição, logo abaixo.

Do interior da Igreja, que dizer? Nele imprimiu sua força. O retábulo do altar-mor não mais será fixo, parado, em prumo. Subverte a ordem, suspendendo-o, investindo-o sobre a capela-mor, trazendo-o para frente até atingir o arco-cruzeiro, criando a espacialidade de um palco em andamento, num movimento dinâmico entre a parede e o teto, entre o homem e a imagem.

Em engenharia, trata-se o arco-cruzeiro de uma peça meramente estrutural de sustentação, a partir de onde toneladas de cargas se concentram: pedras, cimalhas, as grossas toras do telhado, telhas, traves, tudo assentando-se neste derradeiro arco, que deverá ser compacto e espesso, forte para resistir. Aleijadinho, jamais! Não quer saber de coisas grossas, pesadas e rígidas. Ao contrário, quer leveza, ar, sintonia da arte com as infinitudes da delicadeza, como um pássaro pousando sem peso, sem volume nem estática.

Arriscando mesmo o desabamento do próprio templo, naquele decisivo ponto nevrálgico do arco-cruzeiro, desbasta suas paredes internas, afinando-as gravemente, colocando exatamente aí seus púlpitos, o da direita e o da esquerda, num vazamento de irresponsabilidade técnica, privilegiando a mais pura estética. Silencioso interlúdio das combinações rarefeitas se restabelece, onde os púlpitos se entreolham, emudecidos, meditando parábolas de Aleijadinho e Athayde…

Porém, ele não é só o projetista. Quem quiser saber do Aleijadinho escultor, que entre nesta igreja e nela veja o altar-mor, a talha, o cinzel ágil, a reflexão sensível da maestria daquele que sabia das alturas.

No lavabo da sacristia, o pega. Neste instante, a doença manifesta-se: as três datas nele inscritas, 1776/77/78, fazem o percurso do antes, da hora e do depois. 1777, este o fatídico ano, quando para sempre teria de se acostumar com o mal que lhe roubaria o corpo. Não a alma Jamais.

Mais que Barroco, Aleijadinho definitivamente é o Rococó. O homem a anunciar às nações que uma arte nova e rebelde aqui se fazia. Foi potente demais não só para anunciá-la, como concretizá-la, professá-la nas lástimas dos seus dias, nas pedras e cedros, nas imaginações intermináveis de sua inextinguível capacidade criativa.

Feio, doído, arredio, talvez tudo tenha sido ingrediente do lancetar-se aos abismos da introspecção, do projetar-se aos fundos de si, abrindo-se aos mundos de um outro mundo. Nele, a dor é busca, afeto, faces de um Cristo que se aproxima, ao qual toca nas lágrimas de sua verdade. O “Cristo Flagelado” e as obras derradeiras dos “Passos da Paixão”, de Congonhas, introjetam a percepção de quem já alumbrava não mais a vida terrena.

Num ato de comovente pungência, Aleijadinho desnuda-se diante de nós, deixando-se flagrar em sua intimidade de trabalho. As inscrições por ele deixadas na parede interna do corredor da sacristia, à esquerda, tocam-nos às raias da emoção. Com suas próprias mãos, quais aquelas dos homens das cavernas, imprime direto na cal o risco do frontispício da portada, em verdadeira grandeza (como se dali tivesse se ausentado há bem pouco), para vermos o processo utilizado na busca milimétrica da perfeição. Cada pedra era ali medida, na parede, talhada e transportada, sendo colocada em seguida no destino final, onde encontra-se definitiva aos nossos olhos, na fachada

A beleza destas inscrições gráficas remete-nos a outro pujante momento da história artística, quando Michelangelo deixa de propósito intacto o mármore cru, para permearmos a insubstituível força de eternidade contida no “inacabado”, ofertando-nos o próprio processo do fazer.

E o teto? E esta nave flutuante? Quando dois gênios se unem, outro não pode ser o resultado. Em 1800, aos trinta e oito anos, Athayde já detinha os segredos do ofício, rompendo os forros da madeira, propondo o céu à Virgem, que nele se alça por anjos e guirlandas celestiais, neste delírio ilusionista de colunas azuis e vermelhas, em que os crentes, ao se verem nos bancos, tão ínfimos e abaixo, possam entender a transubstanciação do Divino…

Guignard queria ser enterrado na São Francisco, para ficar olhando o teto de Athayde. Ele ali não está, nos túmulos internos do templo, mas no cemitério ao lado. Bem ao seu lado, fronteiriço, descansa para sempre a merecida glória de sua vida, este outro mestre, do esplendor e iridescência das cores, o nosso Ivan Marquetti querido, que repousa junto a outro querido pintor, o Estevão.

Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto por Carlos Bracher
Retábulo da São Francisco de Assis por Carlos Bracher
igreja de São Francisco de Assis em São João del Rei, por Carlos Bracher
com @blimabracher
Blima Bracher

Blima Bracher é jornalista, formada pela UFMG e Engenheira Civil. Trabalhou doze anos em TV como repórter e apresentadora na Globo e Band Minas. Foi Editora da Revista Encontro e Encontro Gastrô. Escritora, cineasta e cronista premiada.

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